quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Faz de Conta

Faz de conta que ela era uma princesa azul pelo crepúsculo que viria, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que sangue escarlate não estava em silêncio branco escorrendo e que ela não estivesse pálida de morte, estava pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz-de-conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz-de-conta verde cintilante de olhos que vêem, faz de conta que ela amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, faz de conta que vivia e que não estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que era sábia bastante para desfazer os nós de marinheiros que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua, faz de conta que ela fechasse os olhos e os seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos da gratidão mais límpida, faz de conta que tudo o que tinha não era de faz-de-conta, faz de conta que se descontraíra o peito e a luz dourada a guiava pela floresta de açudes e tranqüilidade, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando.

Clarice Lispector

6 comentários:

Andreia disse...

Pois eu estou cansada de fazer de conta...
(Belo texto :) )

Beijinho! *

V. disse...

Adoro este texto. Leio-o tantas vezes. Quando me apetece fazer de conta. :)

Beijinho grande*

________________ /// Por Luci Couto /// ________________ disse...

Olá Flávia...

bonito texto, não o conhecia... triste como quem faz de conta, e eu não quero mais...


:)

storytellers disse...

Que lindo este texto! quantas e quantas vezes eu sinto este faz de conta aqui descrito.. faz de conta que não sinto

beijinhos mil

Flávia Vida disse...

meninas;
� verdade, este texto � mesmo lindo de morrer ...
e por mais que n�o gostar�amos de sentir esse faz de conta, um dia ou outro, acabamos sentindo...
[um dia ou outro acabamos por fazer de conta pra amenizar um pouquinho algumas dores e aumentar mais alguns momentos de felicidades ...]

beijos grandes nas 4
:****

dora disse...

faz de conta... ( como se a vida fosse feita de outra coisa qualquer ).
Tão bom encontrar aqui a clarisse!